sábado, 28 de março de 2015

OLIVEIRAS EM FLOR


Nos amores deste mundo,

desde Eva,
há sempre um que ama
e outro que se deixa amar.
 
Eça de Queirós
Ríspida e mal-humorada, a chefe de secção atirou:
Traga-me o processo nº 55!
 
Ao ouvir a ordem, a administrativa levantou-se da cadeira e dirigiu-se ao armário onde seria normal encontrar-se depositado o dito processo. No entanto, estranhamente, o processo não se encontrava onde ela o havia deixado e onde deveria estar.
 
E mesmo depois de “virar o escritório do avesso”, a administrativa não conseguiu localizá-lo. Em pânico, acabou, a meio da tarde, por comunicar à chefe de secção que não conseguia localizar o processo nº 55. Em clima de grande exaltação, a chefe referiu então à administrativa que o desaparecimento de um processo era um facto de altíssima gravidade, o qual tinha gravíssimas implicações, inclusivamente de índole criminal. Referiu, então, em tom sério e ameaçador, que, face ao desaparecimento do processo nº 55, o que a administrativa tinha a fazer era despedir-se, como forma de assumir a responsabilidade por tal facto.


Ficou, assim, a funcionária colocada num estado de inferioridade emocional, em virtude de não ter qualquer explicação plausível para o desaparecimento do aludido processo, estado psíquico este que a colocou numa verdadeira situação de incapacidade de discernimento.

E, num ambiente tumultuoso e de ostensiva e manifesta hostilidade, a chefe de secção confrontou a administrativa com a evidência de factos irrefutáveis, cuja responsabilidade, no seu dizer, não podia deixar de lhe ser inabalavelmente imputada.

Cada vez mais exaltada, a chefe de secção disse à administrativa que se não se despedisse de imediato, participaria criminalmente dela, imputando-lhe a responsabilidade pelo desaparecimento do processo nº 55. 

E, assim, face à situação de evidente falta de confiança em que estava colocada, a administrativa referiu à chefe de secção que solicitaria à gerência a sua transferência para outro posto de trabalho da empresa. Ao que a chefe de secção respondeu, sempre em tom exaltado, que a administrativa não podia solicitar o que quer que fosse, pois tinha que se limitar a assumir as suas responsabilidades, apresentando o seu despedimento.

Tal demissão revestiu-se de contornos absolutamente inimagináveis, na medida em que a carta de rescisão do vínculo laboral da administrativa foi elaborada e concluída pela própria chefe de secção.

Na verdade, face à ameaça que sobre si impendia a administrativa, contra a sua vontade, deu início à elaboração da sua “carta de despedimento” tendo, no ambiente de terror em que se encontrava, e entre lágrimas, apenas conseguido escrever o seu nome e endereço, no canto superior esquerdo, local onde habitualmente se identifica o remetente, bem como o nome e a sede da empresa, no local destinado à identificação do destinatário.

Aqui chegada, a administrativa não conseguiu fazer mais nada senão chorar…

Perante este impasse, e mantendo o tom ameaçador e o modo exaltado e intimidatório com que se dirigia à administrativa, a chefe de secção disse-lhe que saísse da cadeira em que se encontrava sentada, em frente ao processador de texto do computador do serviço e, tomando o lugar dela, concluiu a carta por aquela iniciada escrevendo o seguinte texto:

Assunto: Rescisão de Contrato

Exmo. Senhor Director dos Recursos Humanos,

Serve a presente para comunicar a V. Ex.ª que pretendo pôr termo, com efeitos imediatos, ao meu vínculo laboral com essa empresa.

Sem outro assunto, subscrevo-me com os melhores cumprimentos,
 
De seguida, a chefe de secção imprimiu a referida a carta e colocou-a em frente à administrativa, pressionando-a com insistência para que esta a assinasse. Apesar de renitência em fazê-lo, a funcionária não conseguiu opor-se à veemência com que a sua superior hierárquica a pressionou a assinar tal carta, acabando por assinar a referida carta de despedimento, com lágrimas nos olhos, nesse ambiente de grande hostilidade e pressão, contra a sua vontade e determinação.

Depois de assinada a carta, a chefe de secção fotocopiou a dita, entregando à administrativa a fotocópia extraída depois de nesta pôr o carimbo do serviço e a menção por si manuscrita com uma caneta com tinta de cor preta: “Recebi o original”, sobre a qual colocou a data e a sua assinatura.

De seguida, a chefe de secção ausentou-se do local para ir entregar a dita carta ao director dos Recursos Humanos da empresa. Desta forma, ao invés do que seria expectável e normal, não foi a administrativa a apresentar à empresa a “sua” carta de despedimento, mas sim a chefe de secção a assegurar-se de que tal carta chegaria ao destinatário.

Seriam umas 18h:10 horas. Um ligeiro toque na porta do gabinete foi suficiente para o fazer voltar à realidade.

Faça favor! disse ele, sem saber com quem falava.

Conferida a autorização, a administrativa entrou para a sala principal do gabinete do marido. Havia anos que ela aí não ia. Por nenhuma razão especial, apenas porque não calhava.

Ele já dava explicações há mais de uma vintena de anos, e contavam-se pelos dedos de ambas as mãos as vezes que ela aí tinha entrado. Mas nesse dia, ela ali estava, no gabinete do marido. Um em frente ao outro. A separá-los, uma mesa impecavelmente arrumada, onde tudo estava colocado no sítio certo: agenda, dossiers, canetas, clips e elásticos. Tudo estava devidamente colocado por cima da mesa, fazendo transparecer arrumação e organização.

Não consegui aguentar! referiu a administrativa. 

Depois de dizer isto, abriu o saco e tirou uma folha A4, dobrada ao meio, e entregou-a ao marido. Ele leu e nem queria acreditar: era uma carta assinada pela mulher, na qual anunciava o termo do vínculo laboral que tinha para com a empresa na qual trabalhava.

Mas o que é isto? perguntou o marido.

É o que aí está!

Mas o que é que aconteceu? O que é que te passou pela cabeça?

Por favor, não me perguntes mais nada!

Em turbilhão, passaram pela cabeça do marido coisas disparatadas. O que ele esperava é que ela, a chefe de secção, não tivesse misturado as coisas.

Tinham ambos sido contemporâneos na universidade e, durante essa convivência académica, tinham alimentado um tórrido romance, que começara de uma forma estranha. Viveram, até certa altura, perdidamente apaixonados um pelo outro, uma situação que, no entanto, não se prolongou por muito tempo. Os traços de personalidade eram muito diferentes.

Ela era uma verdadeira fêmea, vivia para vencer, fosse qual fosse a táctica necessária, e só lhe interessava uma posição: a de ficar por cima de tudo e de todos, ainda que à custa de manobras sórdidas ou do sacrifício de quem quer que fosse. E, quanto a isso, ele conhecia-a bem demais. Daí que, ao ver a esposa ali à sua frente, em choro convulsivo, mal conseguindo falar, lhe tenham perpassado pela memória os momentos vividos naquela noite em Florença onde, com outros colegas, ele e a agora chefe de secção da esposa tinham ido parar integrados num inter-rail em viagem de final de curso, há mais de dez anos.

Ficaram todos alojados no Hotel Colomba, no coração do centro histórico da capital toscana, a dois passos da Via Cavour, do majestoso palácio Medici Riccardi, da Stazione Centrale di Santa Maria Novella e da Galleria dell’Accademia onde, entre outras obras de arte dignas de serem admiradas, está a versão original de David di Michelangelo, o monumento que se tornou símbolo da cidade.

Numa madrugada como as últimas, ele ressonava e, ao seu lado, ela desesperava. Numa madrugada como as últimas, ele ressonava e, ao seu lado, ela desesperava. Saltou da cama, deslocou-se silenciosamente, entrou no quarto de banho e acomodou-se na banheira fria. Apontou o jacto de água morna, não muito forte, para o meio das pernas abertas. A água humedeceu-lhe os grandes lábios, numa antecipação de gozo e, por instantes, o universo estava todo ali, naquele prazer célere, quase fastiento de tão centralizado. Abafou uns gemidos grotescos e trincou o indicador esquerdo. Apertou-se por entre êxtases e alongou o corpo moldável, enquanto os dedos dos pés se contorceram. E ele, no quarto de dormir, continuava a ressonar. Esperou que o coração lhe regressasse ao peito, que deixasse de lhe ressoar aos ouvidos, e levantou-se, ainda a cambalear. Entrançou os pés, enquanto se enxugava. Regressou ao quarto de dormir e deitou-se de costas. Com suspiro fundo, puxou para si toda a coberta e, depois de fechar os olhos, antecipou que dali a umas horas, quando calcorreasse a Via Cavour até chegar à maravilhosa Piazza del Duomo e à Basílica di Santa Maria del Fiore, subiria à torre de mármore de várias cores, de Giotto, e do seu cume gozaria de uma esplêndida vista de toda a cidade florentina!

Na manhã seguinte, demorou-se um pouco mais a deixar o quarto, sem apressar a espera. Ela e as esperas sempre se deram bem, desde que as últimas não fossem vãs.

Abandonou lentamente o quarto, até porque lhe teria parecido, ao sair, que ele precisaria de algum tempo (e sossego) para ler o jornal em paz, sem adivinhar que, nesse preciso momento, já o grupo aguardava por ela no átrio da entrada do hotel.

Ao vê-la chegar, ele encolheu os ombros, afagou com as mãos a barba de dois dias que ela detestava e disse-lhe apenas:

Estamos aqui há dez minutos à tua espera para tomar o pequeno-almoço! Sabes que não gosto nada que estejam à nossa espera!

A relação entre ambos já estava muito tremida e, depois de mais uma discussão, ele disse-lhe que assim não valia a pena continuar… Que mais valia dar tudo por terminado, que não conseguia estar ao lado de quem não tinha escrúpulos, de quem não olhava a meios para alcançar os fins a que se propunha, espezinhando quem quer que fosse e traindo amizades de longa data, apenas para estar onde queria: num lugar de mais visibilidade, para ofuscar os demais.

Nessa noite, ao jantar, provaram as especialidades típicas da tradicional cozinha toscana e degustaram os famosos vinhos italianos, em particular o chianti e o brunello, numa trattoria com o inconfundível estilo tradicional. Já de madrugada, resolveram dar uma caminhada pela Loggia della Signoria.

Quando atravessavam a ponte Vecchio, ela começou a despir-se e, já completamente nua e descalça, atirou-se para as águas escuras do rio Arno. Foi tal a confusão que os carabinnieri compareceram no local, detendo o grupo todo, que acabou por passar a noite na esquadra policial a prestar declarações. Ela não só estava completamente alcoolizada como encharcada em barbitúricos. Secamente, apenas declarou que queria morrer.

Chegada ao gabinete, a chefe de secção abriu a mala que continha os respectivos objectos pessoais, correu o fecho interior e retirou uma pequena chave, com a qual abriu o fecho da gaveta da secretária.

Depois disso, correu a gaveta e dela retirou o processo nº 55. Olhou para o pequeno volume. Não seriam mais de quarenta folhas. Beijou-o, exclamando:

Estava a ver que não conseguia despachá-la daqui!

No dia seguinte, no relatório da ocorrência que elaborou, a chefe de secção escreveu o seguinte:

“Encontrando-me no meu gabinete a analisar o processo nº 55, a trabalhadora bateu à porta, pediu licença para entrar e, aí chegada, comunicou-me que se ia despedir, entregando-me uma carta dirigida ao Senhor Director dos Recursos Humanos. De imediato, desloquei-me ao gabinete do Senhor Director dos Recursos Humanos, a quem entreguei a dita carta.”

 Depois de o datar e assinar, a chefe de secção introduziu o relatório da ocorrência num envelope com o timbre da empresa.

Levantou-se, ajeitou o cabelo, retocou o bâton e dirigiu-se ao gabinete do director de Recursos Humanos.

Com os nós dos dedos da mão direita, deu dois toques na porta, a qual se abriu de seguida. Entrou e disse:

Bom dia. Tens aqui o relatório do que aconteceu ontem.

Bom dia. Mas que chatice… Era uma trabalhadora tão zelosa e cumpridora… O que é que terá acontecido para ela se despedir?

Não faço a mínima ideia. Mas há que ir em frente. Não há-de faltar quem queira trabalhar.

Sim, isso é verdade.

Queres jantar comigo esta noite? Arranjo algo especial…

Logo se vê. disse ele. Agora, vamos trabalhar.

Sem saber o que fazer, a administrativa vivia o seu primeiro dia de desemprego.

Estava em casa. Ao seu colo, abraçada a si, a filha de cinco anos olhava pela janela para a velha oliveira que estava plantada no jardim.

Mamã…

Diz, querida.

Não estejas triste… Sabes que eu e o papá gostamos muito de ti.

E nós também gostamos muito de ti, filha. És muito querida.

Mamã… De que cor são as flores das oliveiras?