Nos amores deste mundo,
desde Eva,
há sempre um que ama
e outro que se deixa amar.
Eça de Queirós
Ríspida e mal-humorada, a chefe
de secção atirou:
– Traga-me o processo nº 55!
Ao ouvir a ordem, a administrativa
levantou-se da cadeira e dirigiu-se ao armário onde seria normal encontrar-se
depositado o dito processo. No entanto, estranhamente, o processo não se
encontrava onde ela o havia deixado e onde deveria estar.
E mesmo depois de
“virar o escritório do avesso”, a administrativa não conseguiu localizá-lo. Em
pânico, acabou, a meio da tarde, por comunicar à chefe de secção que não
conseguia localizar o processo nº 55. Em clima de grande exaltação, a chefe
referiu então à administrativa que o desaparecimento de um processo era um
facto de altíssima gravidade, o qual tinha gravíssimas implicações,
inclusivamente de índole criminal. Referiu, então, em tom sério e ameaçador,
que, face ao desaparecimento do processo nº 55, o que a administrativa tinha a
fazer era despedir-se, como forma de assumir a responsabilidade por tal facto.
Depois de o datar e assinar, a
chefe de secção introduziu o relatório da ocorrência num envelope com o timbre
da empresa.
Ficou, assim, a funcionária
colocada num estado de inferioridade emocional, em virtude de não ter qualquer
explicação plausível para o desaparecimento do aludido processo, estado
psíquico este que a colocou numa verdadeira situação de incapacidade de
discernimento.
E, num ambiente tumultuoso e de
ostensiva e manifesta hostilidade, a chefe de secção confrontou a
administrativa com a evidência de factos irrefutáveis, cuja responsabilidade,
no seu dizer, não podia deixar de lhe ser inabalavelmente imputada.
Cada vez mais exaltada, a chefe
de secção disse à administrativa que se não se despedisse de imediato,
participaria criminalmente dela, imputando-lhe a responsabilidade pelo
desaparecimento do processo nº 55.
E, assim, face à situação de
evidente falta de confiança em que estava colocada, a administrativa referiu à
chefe de secção que solicitaria à gerência a sua transferência para outro posto
de trabalho da empresa. Ao que a chefe de secção respondeu, sempre em tom
exaltado, que a administrativa não podia solicitar o que quer que fosse, pois
tinha que se limitar a assumir as suas responsabilidades, apresentando o seu
despedimento.
Tal demissão revestiu-se de
contornos absolutamente inimagináveis, na medida em que a carta de rescisão do
vínculo laboral da administrativa foi elaborada e concluída pela própria chefe
de secção.
Na verdade, face à ameaça que
sobre si impendia a administrativa, contra a sua vontade, deu início à
elaboração da sua “carta de despedimento” tendo, no ambiente de terror em que
se encontrava, e entre lágrimas, apenas conseguido escrever o seu nome e
endereço, no canto superior esquerdo, local onde habitualmente se identifica o
remetente, bem como o nome e a sede da empresa, no local destinado à
identificação do destinatário.
Aqui chegada, a administrativa
não conseguiu fazer mais nada senão chorar…
Perante este impasse, e mantendo
o tom ameaçador e o modo exaltado e intimidatório com que se dirigia à
administrativa, a chefe de secção disse-lhe que saísse da cadeira em que se
encontrava sentada, em frente ao processador de texto do computador do serviço
e, tomando o lugar dela, concluiu a carta por aquela iniciada escrevendo o
seguinte texto:
Assunto: Rescisão de Contrato
Exmo. Senhor Director dos Recursos Humanos,
Serve a presente para comunicar a V. Ex.ª que pretendo pôr termo, com
efeitos imediatos, ao meu vínculo laboral com essa empresa.
Sem outro assunto, subscrevo-me com os melhores cumprimentos,
De seguida, a chefe de secção
imprimiu a referida a carta e colocou-a em frente à administrativa,
pressionando-a com insistência para que esta a assinasse. Apesar de renitência
em fazê-lo, a funcionária não conseguiu opor-se à veemência com que a sua
superior hierárquica a pressionou a assinar tal carta, acabando por assinar a
referida carta de despedimento, com lágrimas nos olhos, nesse ambiente de
grande hostilidade e pressão, contra a sua vontade e determinação.
Depois de assinada a carta, a
chefe de secção fotocopiou a dita, entregando à administrativa a fotocópia
extraída depois de nesta pôr o carimbo do serviço e a menção por si manuscrita
com uma caneta com tinta de cor preta: “Recebi o original”, sobre a qual colocou
a data e a sua assinatura.
De seguida, a chefe de secção
ausentou-se do local para ir entregar a dita carta ao director dos Recursos Humanos
da empresa. Desta forma, ao invés do que seria expectável e normal, não foi a
administrativa a apresentar à empresa a “sua” carta de despedimento, mas sim a
chefe de secção a assegurar-se de que tal carta chegaria ao destinatário.
Seriam umas 18h:10 horas. Um
ligeiro toque na porta do gabinete foi suficiente para o fazer voltar à
realidade.
– Faça favor! – disse ele, sem saber com quem falava.
Conferida a autorização, a
administrativa entrou para a sala principal do gabinete do marido. Havia anos
que ela aí não ia. Por nenhuma razão especial, apenas porque não calhava.
Ele já dava explicações há mais
de uma vintena de anos, e contavam-se pelos dedos de ambas as mãos as vezes que
ela aí tinha entrado. Mas nesse dia, ela ali estava, no gabinete do marido. Um
em frente ao outro. A separá-los, uma mesa impecavelmente arrumada, onde tudo
estava colocado no sítio certo: agenda, dossiers,
canetas, clips e elásticos. Tudo
estava devidamente colocado por cima da mesa, fazendo transparecer arrumação e
organização.
– Não consegui aguentar! –
referiu a administrativa.
Depois de dizer isto, abriu o
saco e tirou uma folha A4, dobrada ao meio, e entregou-a ao marido. Ele leu e
nem queria acreditar: era uma carta assinada pela mulher, na qual anunciava o
termo do vínculo laboral que tinha para com a empresa na qual trabalhava.
– Mas o que é isto? – perguntou o marido.
– É o que aí está!
– Mas o que é que aconteceu? O
que é que te passou pela cabeça?
– Por favor, não me perguntes
mais nada!
Em turbilhão, passaram pela
cabeça do marido coisas disparatadas. O que ele esperava é que ela, a chefe de
secção, não tivesse misturado as coisas.
Tinham ambos sido contemporâneos
na universidade e, durante essa convivência académica, tinham alimentado um
tórrido romance, que começara de uma forma estranha. Viveram, até certa altura,
perdidamente apaixonados um pelo outro, uma situação que, no entanto, não se
prolongou por muito tempo. Os traços de personalidade eram muito diferentes.
Ela era uma verdadeira fêmea,
vivia para vencer, fosse qual fosse a táctica necessária, e só lhe interessava
uma posição: a de ficar por cima de tudo e de todos, ainda que à custa de
manobras sórdidas ou do sacrifício de quem quer que fosse. E, quanto a isso,
ele conhecia-a bem demais. Daí que, ao ver a esposa ali à sua frente, em choro
convulsivo, mal conseguindo falar, lhe tenham perpassado pela memória os
momentos vividos naquela noite em Florença onde, com outros colegas, ele e a
agora chefe de secção da esposa tinham ido parar integrados num inter-rail em
viagem de final de curso, há mais de dez anos.
Ficaram todos alojados no Hotel
Colomba, no coração do centro histórico da capital toscana, a dois passos da
Via Cavour, do majestoso palácio Medici Riccardi, da Stazione Centrale di Santa
Maria Novella e da Galleria dell’Accademia onde, entre outras obras de arte
dignas de serem admiradas, está a versão original de David di Michelangelo, o
monumento que se tornou símbolo da cidade.
Numa madrugada como as últimas,
ele ressonava e, ao seu lado, ela desesperava. Numa madrugada como as últimas,
ele ressonava e, ao seu lado, ela desesperava. Saltou da cama, deslocou-se
silenciosamente, entrou no quarto de banho e acomodou-se na banheira fria.
Apontou o jacto de água morna, não muito forte, para o meio das pernas abertas.
A água humedeceu-lhe os grandes lábios, numa antecipação de gozo e, por
instantes, o universo estava todo ali, naquele prazer célere, quase fastiento
de tão centralizado. Abafou uns gemidos grotescos e trincou o indicador
esquerdo. Apertou-se por entre êxtases e alongou o corpo moldável, enquanto os
dedos dos pés se contorceram. E ele, no quarto de dormir, continuava a
ressonar. Esperou que o coração lhe regressasse ao peito, que deixasse de lhe
ressoar aos ouvidos, e levantou-se, ainda a cambalear. Entrançou os pés,
enquanto se enxugava. Regressou ao quarto de dormir e deitou-se de costas. Com
suspiro fundo, puxou para si toda a coberta e, depois de fechar os olhos,
antecipou que dali a umas horas, quando calcorreasse a Via Cavour até chegar à
maravilhosa Piazza del Duomo e à Basílica di Santa Maria del Fiore, subiria à
torre de mármore de várias cores, de Giotto, e do seu cume gozaria de uma
esplêndida vista de toda a cidade florentina!
Na manhã seguinte, demorou-se um
pouco mais a deixar o quarto, sem apressar a espera. Ela e as esperas sempre se
deram bem, desde que as últimas não fossem vãs.
Abandonou lentamente o quarto,
até porque lhe teria parecido, ao sair, que ele precisaria de algum tempo (e
sossego) para ler o jornal em paz, sem adivinhar que, nesse preciso momento, já
o grupo aguardava por ela no átrio da entrada do hotel.
Ao vê-la chegar, ele encolheu os
ombros, afagou com as mãos a barba de dois dias que ela detestava e disse-lhe
apenas:
– Estamos aqui há dez minutos à
tua espera para tomar o pequeno-almoço! Sabes que não gosto nada que estejam à
nossa espera!
A relação entre ambos já estava
muito tremida e, depois de mais uma discussão, ele disse-lhe que assim não
valia a pena continuar… Que mais valia dar tudo por terminado, que não
conseguia estar ao lado de quem não tinha escrúpulos, de quem não olhava a
meios para alcançar os fins a que se propunha, espezinhando quem quer que fosse
e traindo amizades de longa data, apenas para estar onde queria: num lugar de mais
visibilidade, para ofuscar os demais.
Nessa noite, ao jantar, provaram
as especialidades típicas da tradicional cozinha toscana e degustaram os
famosos vinhos italianos, em particular o chianti
e o brunello, numa trattoria com o inconfundível estilo
tradicional. Já de madrugada, resolveram dar uma caminhada pela Loggia della
Signoria.
Quando atravessavam a ponte
Vecchio, ela começou a despir-se e, já completamente nua e descalça, atirou-se
para as águas escuras do rio Arno. Foi tal a confusão que os carabinnieri
compareceram no local, detendo o grupo todo, que acabou por passar a noite na
esquadra policial a prestar declarações. Ela não só estava completamente
alcoolizada como encharcada em barbitúricos. Secamente, apenas declarou que
queria morrer.
Chegada ao gabinete, a chefe de
secção abriu a mala que continha os respectivos objectos pessoais, correu o
fecho interior e retirou uma pequena chave, com a qual abriu o fecho da gaveta
da secretária.
Depois disso, correu a gaveta e
dela retirou o processo nº 55. Olhou para o pequeno volume. Não seriam mais de quarenta
folhas. Beijou-o, exclamando:
– Estava a ver que não conseguia
despachá-la daqui!
No dia seguinte, no relatório da
ocorrência que elaborou, a chefe de secção escreveu o seguinte:
“Encontrando-me no meu gabinete a analisar o processo nº 55, a trabalhadora
bateu à porta, pediu licença para entrar e, aí chegada, comunicou-me que se ia
despedir, entregando-me uma carta dirigida ao Senhor Director dos Recursos
Humanos. De imediato, desloquei-me ao gabinete do Senhor Director dos Recursos
Humanos, a quem entreguei a dita carta.”
Levantou-se, ajeitou o cabelo,
retocou o bâton e dirigiu-se ao gabinete do director de Recursos Humanos.
Com os nós dos dedos da mão
direita, deu dois toques na porta, a qual se abriu de seguida. Entrou e disse:
– Bom dia. Tens aqui o relatório
do que aconteceu ontem.
– Bom dia. Mas que chatice… Era
uma trabalhadora tão zelosa e cumpridora… O que é que terá acontecido para ela
se despedir?
– Não faço a mínima ideia. Mas
há que ir em frente. Não há-de faltar quem queira trabalhar.
– Sim, isso é verdade.
– Queres jantar comigo esta
noite? Arranjo algo especial…
– Logo se vê. – disse ele. – Agora, vamos trabalhar.
Sem saber o que fazer, a
administrativa vivia o seu primeiro dia de desemprego.
Estava em casa. Ao seu colo,
abraçada a si, a filha de cinco anos olhava pela janela para a velha oliveira
que estava plantada no jardim.
– Mamã…
– Diz, querida.
– Não estejas triste… Sabes que
eu e o papá gostamos muito de ti.
– E nós também gostamos muito de
ti, filha. És muito querida.
– Mamã… De que cor são as flores
das oliveiras?