A leitura dos últimos
jornais locais dá-nos conta que algumas autarquias (municipais e de freguesia) da
nossa Região decidiram comemorar, festejar ou o quer que seja, o cumprimento de
quinhentos anos sobre as datas em que el-Rei D. Manuel I, assinou, outorgou ou
concedeu os chamados Forais Novos ou Forais Reformados aos seus respectivos lugares.
Deve dizer-se que este Soberano assinou, outorgou ou concedeu, entre 1500 (o
primeiro da série, atribuído à cidade de Lisboa) e 1519, perto de 800
(oitocentos) forais a outras tantas localidades.
E que, depois disso, por
outros monarcas seus sucessores foram outorgados mais alguns, por isso chamados
Forais Novíssimos, em que entram também terras do domínio português, no
Ultramar.
Alegadamente, como dele diz o seu cronista Damião de Goes,
“desejoso de deixar de si memória, mui
prudente, de claro e bom juízo... considerando quanto pera bem reger seus
súbditos, e pera melhor cumprimento de
inteira e igual justiça”, e, convindo regular os direitos de cada uma das
cidades, vilas e lugares, deu-lhes Leis particulares, para além da Reforma das
Ordenações Antigas, que fez compilar para todo o Reino, acerca da polícia,
justiça, impostos (foros), privilégios e condição civil de cada uma delas. De
facto, o sistema legislativo e fiscal da época era um verdadeiro caos, com
milhentos senhores (da nobreza e do clero, quer monástico, quer episcopal) a
usufruírem de fartos proventos que o povo ia pagando, nuns casos, para salvação
da alma, noutros, para salvaguarda do coiro.
Já antecessores daquele monarca se haviam queixado que as
suas heranças, enquanto Reis, eram as estradas de Portugal, porque a maior
parte do território e seu rendimento estava nas mãos dos grandes senhores. Por outro
lado, D. Manuel tinha também herdado a grande gesta dos Descobrimentos, pelo
que todo o dinheiro da Coroa seria pouco para o empreendimento que lhe cumpria
continuar. Assim, D. Manuel, para além de querer colocar alguma ordem na
rapinagem generalizada e de pretensamente impor alguma justiça na cobrança dos
foros, pretendia, também, conseguir algum dinheiro para o erário público. Por
isso, os Forais ditos manuelinos eram, fundamentalmente, leis fiscais
particulares para cada lugar.
Nenhum
deles criou concelhos, administrativamente falando.
Por isso, porquê esta pretensão actual, por parte de
algumas autarquias, de comemorar a outorga do Foral atribuído, como se fosse
uma lei fundadora de qualquer coisa?
É ideia, ainda bastante generalizada, que os Forais
manuelinos elevaram as povoações a que foram destinados a Concelhos, com a sua
jurisdição e administração própria e, consequentemente, com as suas vantagens e
privilégios. Porém, a ideia é errada, como está, há muito, provado por
eminentes estudiosos da História do Direito.
Marcello Caetano, que foi ilustre
professor da Faculdade de Direito de Lisboa, na sua História do Direito
Português (pp. 236/237), afirma perentoriamente: Debalde se procurará [nos forais] a organização do município com a indicação das suas magistraturas.
Muitos forais são totalmente omissos a esse respeito. A organização municipal
era costumeira: existia já na data da outorga do foral ou se estruturava depois
(em relação aos forais anteriores aos concedidos por D. Manuel), segundo os costumes locais. Coisa
semelhante diz Paulo Merêa, entre muitos outros autores, contrariando a ideia
gerada por Alexandre Herculano que, onde havia outorga de foral, havia a
criação de concelho, ideia que ainda não saiu da cabeça de muita gente.
O que interessava ao Rei, era,
realmente, impor alguma ordem na cobrança dos impostos, para que, ele próprio e
o seu erário, não fossem demasiado prejudicados. Para não sairmos da região dos
concelhos bairradinos, acrescentamos que D. Manuel I outorgou Forais às
seguintes povoações: Aguada de Baixo (1514), Aguada de Cima (1514), Aguim
(1514), Amoreira da Gândara (1514), Anadia (1514), Antes (1514), Avelãs de
Caminho (1514), Avelãs de Cima (1514), Bairro do Mogo (1514), Boialvo (1514), Bostelo
(1514), Canelas (1514), Cantanhede (1514), Carvalhais (1514), Casal Comba
(1514), Famalicão (1514), Fogueira (1514), Fonte Arcada (1514), Fontemanha
(1514), Forcada (1514), Horta, Landeosa (1514) Lavandeira (1514),Mogofores
(1514), Monte Longo (1514), Neves do Pinheiro (1514), Óis do Bairro (1514),
Oliveira do Bairro (1514), Padela (1514), Paraimo (1514), Sá (1514) S. João (da
Azenha) 1514, Paredes do Bairro (1515), Pedrulha (1514), Peregal (1514), Pereiro
(1514), Póvoa do Bispo (1514),P Póvoa do Pereiro (1514), Póvoa do Roupeiro
(Graciosa) 1514, Recardães (1516), Troviscal (1516), Repolão (1514), Sangalhos
(1514), Silva (1514), Tamengos (1540), Vacariça (1514), Várzeas (1514), Vila
Nova de Monsarros (1514), Vilarinho do Bairro (1514), Vimieira (1514).
Salvaguarda-se a omissão de alguma
povoação que nos tenha escapado, e regista-se que o lugar de Vale de Avim
(Moita-Anadia), continuou a regular-se por um Foral dado em Maio de 1210, por não
lhe ter sido outorgado foral novo.
Todos os lugares referenciados como
tendo tido Foral Manuelino eram sedes de concelho? De facto, quase todos, se
não mesmo todos estes lugares eram, já, concelhos, constituídos havia alguns
séculos, em relação às datas em que lhes foram outorgados forais manuelinos. Numa
altura em que, a par dos muitos poderes dos Senhores, leigos ou religiosos, o
poder real pretendia robustecer-se, não fazia grande sentido, que D. Manuel I
fizesse crescer mais um poder (o poder local) que, necessariamente, se lhe
opunha. Pelo contrário, a D. Manuel (e
com ele, os seus próximos antecessores) convinha, sem criar novos, manter os
concelhos existentes, os quais, de algum modo, refreavam o poder senhorial que,
esse sim, lhe era verdadeiramente nefasto.
Temos, assim, que, se todas as autarquias
e autoridades de todos os lugares acima referidos decidissem comemorar o quinto
centenário da lei (Foral) que confirmou as suas obrigações fiscais para com os
seus senhorios e para com o próprio Rei, iríamos ter, por esta Bairrada, quase
meia centena de grandes festejos.
Ora, não consta que, há quinhentos anos, os
forais tenham sido recebidos com regozijo pelas populações a que se destinavam,
mas, antes, com alguma insatisfação e, até, com reclamações explícitas, como
aconteceu com o foral “dado” a Anadia, em que, no mesmo acto da sua entrega, os
procuradores do povo e o próprio povo exigiram que se exarasse, no respectivo
termo, algumas das reclamações que julgaram pertinentes, sem agravar muito a
autoridade de quem “podia, queria e mandava”.
Carlos Alegre, no 'Jornal da Bairrada' de 30 de Janeiro de 2014