quarta-feira, 5 de junho de 2013

O CRIME DA RUA DO SOL

Como era o jornal lá de casa, foi nas colunas do JN que aprendi a identificar as letras e me iniciei na magia de as juntar em palavras, pelo que já não era analfabeto quando, algures em outubro de 1962, tive o meu primeiro dia de aulas na Primária do Campo 24 de Agosto.

A palavra muito foi o primeiro mistério na minha aventura pela língua portuguesa. Nunca percebi por que é que o n que se lê a seguir ao ditongo ui nunca emergiu da clandestinidade e foi legalizado na grafia. Se se lê muinto por que é que se escreve muito?


Contudo o enigma do n clandestino não passa de um pequeno devaneio juvenil ao lado dos dias de terror puro que vivi quando tinha uns sete anos, enquanto não foi desvendado o mistério do crime da Rua do Sol, o macabro caso de uma comerciante de solas e cabedais que foi esfaqueada até à morte.

Como morava no 2.o andar do 304 da Avenida de Rodrigues de Freitas, em frente à Casa de Espanha, ou seja à distância de um tiro da Rua do Sol, vivi semanas atormentado pelo medo de ser atacado pelo criminoso que andava à solta.

Não imaginam o alívio que senti ao ler na primeira página do JN a notícia da prisão do assassino que, surpresa das surpresas, era o sapateiro que morava em frente da vítima e ganhara protagonismo a ajudar a investigação policial!

(Mais tarde, tive o prazer de conhecer e fazer amizade com o Germano Silva, o jornalista que cobriu para o JN o crime da Rua do Sol e teve um papel decisivo no desmascaramento do sapateiro).

Cresci e fiz-me homem a saber pelo JN do que se passava na minha cidade, no meu clube e no resto do Mundo. A minha paixão por livros policiais deriva da maneira intensa como vivi os desenvolvimentos do crime da Rua do Sol. Foi a leitura das tiras do Dr. Kildare, Agente Secreto X 9 e Lola que fizeram de mim um fanático por BD. E quero acreditar que fui contaminado pelo humor inteligente e ácido do Miranda, uma lambarice que o JN oferecia.

A meio do curso, quando sonhei ser jornalista - convencido de que isso me permitiria conhecer uma data de gente interessante e viajar à brava e de borla (confirmaram-se ambas as expetativas) - tive o meu primeiro emprego como revisor de provas no JN, onde suportei um horário horrível (20 h/3 h) porque me pareceu estar num trampolim que me poderia catapultar para a Redação. Foi verdade - não para a do JN, como eu ambicionava, mas para a do "Norte Desportivo".

Durou 32 anos a minha viagem - com escalas no "Comércio do Porto", "Semanário", "Expresso", etc. - até que há dois anos me foi dada a oportunidade de finalmente regressar a casa. Não podia deixar de agarrar esta oportunidade de ajudar o JN a dar voz ao Norte e a chegar fresco como uma alface ao séc. XXI, depois de ter nascido no séc. XIX e ter atravessado todo o século XX.

Nesta hora em que o nosso JN comemora 125 anos, senti que podia partilhar estas memórias com o meu patrão, a pessoa que me paga o salário, que é precisamente você, meu amigo Leitor.

Retirada daqui