sábado, 27 de novembro de 2010

ÁLVARO CUNHAL: O HOMEM QUE GOSTAVA DE AMAR


O líder histórico do PCP sempre tentou esconder as emoções. Agora começam a ser reveladas.

Álvaro Cunhal tinha um magnetismo heróico que atraía as mulheres. "O Álvaro foi um homem como outro qualquer na sua vida sexual. Apesar de querer passar por uma pessoa que não se interessava por essas coisas, e que não prevaricava, prevaricou.

Prevaricou como as outras pessoas, homens e mulheres, prevaricam." As revelações de Cândida Ventura, amiga de sempre de Álvaro Cunhal, e com quem namorou em jovem, ajudam a traçar outro retrato do líder comunista. Quem foi o homem por detrás do mito?

O ar frio e misterioso que Álvaro Cunhal cultivava vai sendo aos poucos desmistificado. A biografia "Álvaro Cunhal. Retrato Pessoal e Íntimo", do jornalista Adelino Cunha (edição Esfera dos Livros), traz a público novos dados sobre o seu lado mais humano, que em vida tanto tentou esconder. O líder histórico do Partido Comunista Português "gostava de amar". "Amor sem sexo não chega a ser amor. E sexo sem amor é sexo pobre", dizia Cunhal. Dos prazeres da juventude elegeu os amigos, as mulheres, os desportos e as danças. "Todas as danças eram danças de par, o que enriquecia o gosto de dançar com uma mulher nos braços." Aprendeu todas as danças de salão da época: tango, maxixe, foxtrot, rumba, charleston e black-bottom.

A fuga do Forte de Peniche, em Janeiro de 1960, trouxe a Cunhal mais que a liberdade. No abrigo na serra de Sintra, que serviria de ponte para o exílio em Moscovo, conheceu Isaura Moreira. Ela era uma jovem idealista de 19 anos. Ele tinha 47. A única filha, Ana, nasceu em Dezembro do mesmo ano. "Foi muito amor acumulado dentro da prisão", diz o autor da biografia.

O exílio foi passado num apartamento T4 situado na Voroby''evskoye (Avenida dos Pardais), num bairro tranquilo próximo de Moscovo, exclusivo para funcionários do partido. Isaura admite que Álvaro preferia um filho homem, mas que nem por isso deixava de ser um "pai galinha". Entrava nas brincadeiras de "Anita", a filha, e "Guidinha", filha de Margarida Tengarrinha e de José Dias Coelho, assassinado pela PIDE. Os montes de neve ao longo das ruas frias de Moscovo eram desbravados pelas mais novas e os seus trenós. Cunhal gostava de tirar fotografias a preto-e-branco, que depois revelava num estúdio improvisado na casa de banho de sua casa. Os brinquedos, dizia Cunhal, estragavam a criatividade das crianças. "A nossa filha alimentava-se muito mal e ele fazia desenhos para a distrair e aproveitava para lhe meter a comida na boca", recorda Isaura. Cunhal ajudava nas tarefas da casa e cozinhava com frequência. "Fazia lindamente mioleira com ovos mexidos", lembra Margarida Tengarrinha, que também fazia parte da comunidade de portugueses exilados na Rússia.

A biografia revela o exílio em Moscovo como um período marcadamente afectivo e de intensa vida cultural. O acesso às óperas e bailados no Teatro Bolshoi era difícil, mas Cunhal usava esporadicamente da sua influência na nomemklatura soviética para reservar bilhetes para ele e para os restantes portugueses.

Cunhal e Isaura separaram-se quando Ana fez cinco anos. Mãe e filha foram viver para Bucareste. Cunhal perdeu a relação próxima que mantinha com Ana, que mais tarde se revelou muito difícil de recuperar.

A família Apesar das raízes burguesas, Cunhal considerava-se um "filho adoptivo do proletariado". O pai era um exemplo a seguir, "uma pessoa boa que defendeu sei lá quantos presos políticos e a mim próprio". Avelino Cunhal compreendia a vida escolhida pelo filho. Com a mãe, uma "mulher conservadora", a relação foi diferente. Mercedes Barreirinhas não podia aceitar os caminhos políticos que o levavam à prisão e à tortura. Era como perder um filho vivo. As mortes dos irmãos António José, aos 24 anos, e Maria Mansueta, com apenas 7, marcaram a família. O nascimento de Eugénia, mais nova 14 anos, trouxe "uma certa animação a essa vida muito triste", confessou Álvaro. Sempre teve uma ligação muito forte com a irmã, mesmo quando esteve exilado. "A grande distância, o não ter visto mais o Pai, o não ter podido dizer-lhe um último adeus e uma última palavra, são dores irreparáveis", escreveu Álvaro a Eugénia. A devastação com a morte do pai levou Cunhal a revelar emoções que escondia a todo o custo: "Que te posso dizer das lágrimas que chorei e choro, e de todas as razões delas, e das mil inquietações para que não tenho resposta?" A ternura que sentia pela "maninha" ganhou forma quando o cunhado se suicidou. "Querida, muito querida irmã: um grande, grande abraço, aquele que gostaria de poder dar-te neste momento de profunda tristeza. Repito ainda: não desanimes, olha em frente, olha para a vida e confia."

O reencontro Cunhal e Ana só se reencontrariam em 1974. Em Julho, Cunhal deslocou-se ao aeroporto de Lisboa para receber "os filhos da clandestinidade". Rapazes e raparigas filhos de comunistas que foram estudar em países de Leste, principalmente em Moscovo, para escapar ao Estado Novo. A presença de Ana no grupo foi mantida em segredo a pedido do próprio. O carinho do líder do PCP com uma menina loura de 14 anos passou despercebida no meio do êxtase colectivo. O momento ficou numa foto que só anos mais tarde foi reconhecida por Isaura.

Já perto dos 90 anos, Álvaro Cunhal escreveu Risco na Areia, que retrata a actividade política de um centro de trabalho do PCP dos dias que antecedem o 28 de Setembro à queda de Spínola. Mas o romance esconde subtilmente impressões da vida familiar, reflectindo a angústia de um pai que se teve de se separar da filha antes do 25 de Abril devido ao combate pelo ideal comunista.

Ana Cunhal nunca quis ser a filha exemplar do líder modelo. "Queria ser livre de cometer erros na minha vida, como qualquer outra pessoa, sem ter de passar por um julgamento público. E consegui", conta Ana. A pressão social para a militância era muita e chegou a ouvir um sermão por ter responsabilidades acrescidas como filha de Cunhal. Ficou indignada com o "fanatismo": "Os que queriam fazer de mim um exemplo acabaram por desistir." Ana partiu de "mochila às costas" e viveu na Bélgica e mais tarde nos Estados Unidos, onde reside actualmente. Tentava vir a Portugal para os filhos visitarem Cunhal. No reencontro com o avô, o filho mais velho de Ana, na altura com sete anos, desenhou um prato com um hambúrguer, batatas fritas, salada de tomate e uma Coca-Cola. Cunhal emocionou-se. Reaprender a vida em liberdade foi um processo lento: significava assumir a sua personalidade. Sem mitos nem máscaras. Os últimos anos de vida, já doente, foram passados em família, mas com o devido resguardo. "Gosto muito de ser avô, como gosto de ser pai, de ser companheiro, de ser irmão, de ser familiar empenhado no amor às pessoas que me são queridas. O amor e a amizade têm sido uma das grandes riquezas da minha vida", admitiu.

Há uma parte no Risco na Areia em que o herói hesita entre entregar-se ao partido e aos camaradas e recuperar o amor da filha. "Pelo caminho não surpreendeu as lágrimas correndo pelo rosto. Nem o surpreendia que tendo, vida fora, passado sempre sereno e seguro muitos duros momentos, se sentisse então desalentado e sem vontade de viver", dizia "Gabriel". O homem implacável e de ar distante e frio, que aguentou torturas e sacrifícios em nome de uma causa, esteve à beira da queda com o desgosto da rejeição da filha.

Sónia Cerdeira, aqui